Prosa


“A ÁRVORE E O HOMEM”

 O PRIMEIRO... problema que as árvores parecem propor-nos é o de nos conformarmos com a sua mudez. Desejaríamos que falassem, como falam os animais, como falamos nós mesmos. Entretanto, elas e as pedras reservam-se o privilégio do silêncio, num mundo em que todos os seres têm pressa de se desnudar. Fiéis a si mesmas, decididas a guardar um silêncio que não está à mercê dos botânicos, procuram as árvores ignorar tudo de uma composição social que talvez se lhes afigure monstruosamente indiscreta, fundada como está na linguagem articulada, no jogo de transmissão do mais íntimo pelo mais coletivo. Grave e solitário, o tronco vive num estado de impermeabilidade ao som, que os humanos só atingem por alguns instantes e através da tragédia clássica. Não logramos comovê-lo, comunicar-lhe a nossa intemperança. Então, incapazes de trazê-la para a nossa domesticidade, consideramo-lo um elemento da paisagem, e pintamo-lo. Ele pende, lápis ou óleo, de nossa parede, mas esse artifício não nos ilude, não incorpora a árvore à atmosfera de nossos cuidados. O fumo dos cigarros, subindo até o quadro, parece vagamente aborrecê-la, e certas árvores de Van Gogh, na sua crispação, têm algo de protesto.
De resto, o homem vai renunciando a esse processo de captura da árvore através da arte. Uma revista de vanguarda reúne algumas dessas representações, desde uma tapeçaria persa do século IV, onde aparece a palmeira heráldica, até Chirico, o criador da árvore genealógica do sonho, e dá a tudo isso o título: Decadência da árvore. Vemos através desse documentário que num Claude Lorrain da Pinacoteca de Munique, Paisagem com caça, a árvore colossal domina todo o quadro, e a confusão de homens, cães e animal acuado constitui um incidente mínimo, decorativo. Já em Picasso a árvore se torna raríssima, e a aventura humana seduz mais o pintor do que o fundo natural em que ela se desenvolve. O que será talvez um traço da arte moderna, assinalado por Apollinaire, ao escrever: “Os pintores, se ainda observam a natureza, já não a imitam, evitando cuidadosamente a reprodução de cenas naturais observadas ou reconstituídas pelo estudo... Se o fim da pintura continua a ser, como sempre foi, o prazer dos olhos, hoje pedimos ao amador que procure tirar dela um prazer diferente do proporcionado pelo espetáculo das coisas naturais.” Renunciamos assim às árvores, ou nos permitimos fabricá-las à feição dos nossos sonhos, que elas, polidamente, se permitem ignorar.
Contudo “à noite, as árvores passeiam entre os bois”. Foi Jules Renard quem o observou. Esse escritor chegou a fixar, entre outros croquis, uma “reunião meditativa de árvores, presidida pela lua”. Já lhe damos menos crédito quando se refere assim a um exemplar solto: “A árvore, que, com o seu galho esticado, tem o ar de dizer-me: Eu te ordeno.” Realmente, é a sublime indiferença das árvores com relação ao pintor, escritor ou turista, que lhes confere essa dignidade vegetal a que inutilmente aspiramos, confundindo-a com placidez. A árvore não se lembraria de recomendar-nos ou proibir-nos coisa alguma. Um carvalho entre águas e nuvens deixa-se ser, desdenhosamente, o carvalho de Pope, e à sua sombra o poeta compõe a Ode à solidão; um loureiro consentirá em ser plantado por Petrarca no túmulo de Virgílio, em Pausilipo, e ao perecer será substituído por exemplar menos ilustre, cultivado por um poeta menos ilustre, Casimir Delavigne. E um salgueiro não porá embargo a pender sobre o túmulo de Musset, no Père Lachaise. Nos parques municipais, gerações e gerações de namorados gravam no lenho indiferente um nome, uma data, um juramento; mas as árvores depositárias desse legado abstêm-se de assimilar o frenesi ou a dolência que os inspirou. Tudo fazemos para comprometê-las em nossas aventuras de homem, atribuindo-lhes mesmo, pela imaginação poética, a revolta interior contra a sua condição, um “desejo de ser homem”, que não é afinal mais do que manifestação exacerbada de nosso pobre romantismo, compensação literária ao enfado de nossa própria e incômoda condição. Mas deixemos a árvore em paz. Ela não ambiciona o estado civil e suas lágrimas.
E glória à fotografia, que se apresenta como mediadora no impasse entre o homem e a árvore, agravado pela pintura. Glória aos fotógrafos, a essa objetiva humilde que vai visitar as árvores na mata, no jardim público ou à beira da estrada, e delas recolhe a imagem menos imperfeita, porque menos individualista — árvore em estado de árvore. Não me achando em condições de possuir um sítio, nem mesmo uma araucária particular, incompatível com as dimensões do metro quadrado em que resido, eu (e aqui sou João, Leovigildo, Heitor, homem urbano em geral), consolo-me contemplando algumas fotografias de olmos, faias, eucaliptos, jequitibás, espécies resinosas e essências. Amo vê-las em grupo ou isoladas; oferecendo à pressão do vento a massa compacta de folhagem; refletindo, interceptando ou matizando os raios solares que tentam penetrá-las; lavando-se à beira da corrente, em sincera solidão; ou ainda contrastando com os frágeis monumentos de pedra, tijolo e cimento, que chamamos de casas, e que é tão raro não “sobrarem” na natureza; e até mesmo esparsas entre esses outros monumentos, os mais frágeis de todos, de nervos e vasos sanguíneos, que chamamos de homens, e tampouco sabem integrar-se no conjunto natural onde folhas, raízes, insetos e ventos se organizam sem política. Sim, minha simpatia vai agora para essa composição fotográfica onde duas mulheres de cabeça inclinada avançam por uma longa alameda de troncos veneráveis. A câmara esboça aqui uma compatibilização, por assim dizer, do elemento vegetal com o humano. A árvore com sua altura de árvore, a criatura humana com seu porte de criatura humana. E entre as sombras paralelas das mulheres e das árvores, meu olhar também passeia meditativo, pacificado, nostálgico, talvez, de uma primitiva unidade de que houvéssemos perdido a memória, e estaria prestes a recompor-se. Glória e gratidão aos fotógrafos, que respeitam as árvores e não tentam decifrá-las.
Carlos Drummond de Andrade

O jogo das pedrinhas
Havia pouca gente no estabelecimento quando entrei. Enquanto tomava o meu café pude assistir com sossego ao acontecimento, cuja importância fui compreendendo. Era o jogo das pedrinhas. A menina tinha talvez três anos e estava sentada sobre o balcão. Um senhor, que parecia ser o pai, estava diante dela e tinha de adivinhar em qual das mãos tinha a menina colocado uma pedra pequenina. Ela, com os braços atrás das costas, sem que o pai pudesse ver, deixara a pedra numa das mãos, e agora estendia-as ambas, fechadas, para o pai adivinhasse.
O pai escolheu uma das mãos, mas não acertou. Foi isso o que a criança lhe disse, começando imediatamente a preparar-se para repetir o jogo. Mas o pai pediu-lhe que abrisse as duas mãos com as palmas para cima. Era preciso que ela apresentasse a prova de que o pai não tinha acertado…
O senhor partiu do princípio de que a filha podia estar a mentir. Não estava… mas abriu as mãos.
Enquanto tomava o meu café assisti ao instante exacto em que aquela menina aprendeu que não era merecedora de confiança, que não acreditavam nela, que a sua palavra não tinha valor. Que esperavam dela que fosse capaz de enganar os outros para alcançar os seus objectivos.
Aos três anos. Num jogo. Com o pai.
Muito se poderia dizer acerca das mentiras das crianças ao longo do seu desenvolvimento – muitas vezes relacionadas com a aprendizagem de o que é a realidade e o que é a imaginação. Mas este caso não tem relação com isso.
Enquanto tomava o meu café pareceu-me estar a assistir a um exemplo concreto de como se colocam minas nos alicerces do mundo. “Estamos todos num mesmo barco, em mar tempestuoso, e devemos uns aos outros uma terrível lealdade”, escreveu Chesterton. Essa lealdade é necessária nos fundamentos da convivência entre os homens.
E lembrei-me de como os antigos tinham tão elevada estima pela sua honra que a defendiam com unhas e dentes, de como consideravam uma desgraça a sua perda.
A honra de uma pessoa é o reconhecimento de que essa pessoa é íntegra e digna de confiança. Não como consequência de uma campanha artificial, como agora se consegue através da publicidade e da propaganda, mas como resultado de um longo e constante esforço por ter um comportamento correto.
O mundo é uma selva, e isso conduziu-nos à desconfiança. Desconfiamos por princípio, por hábito, por medo, por insegurança, por prudência. Desconfiamos sempre. Se alguma vez confiamos, passamos muito possivelmente pela amargura de sermos enganados. Desconfiamos porque a nossa experiência de vida nos levou a desconfiar. Aprendemos com os nossos erros e fazemos muito bem.
Fazemos muito bem… desde que não queiramos fazer nada para mudar o mundo, desde que estejamos contentes com a selva que nos rodeia, desde que não nos importemos com ferir as pessoas que estão ao nosso lado. Porque é preciso que tomemos consciência de que ofendemos uma pessoa quando partimos do princípio de que ela não é digna de confiança. E de que essa ofensa é sentida muito mais vivamente se essa pessoa for jovem. Não há melhor forma de fazer de uma criança um mentiroso do que desconfiar dela. E confiar nela é necessário para que venha a ser um adulto verdadeiro.
Nas crianças devemos confiar sempre. Ao lidar com elas estamos a construir o mundo. Devem crescer com a noção de que se espera delas a verdade, a nobreza, a dignidade. Devem saber que é isso o normal, embora exija esforço.
Querem ser boas, querem aprender, querem ser gente a sério. São o que de melhor há no mundo. Têm os olhos limpos, o coração limpo e as mãos limpas. Acreditemos nelas. Se alguma vez nos enganarem, não há o risco de que entendam esse comportamento como normal, porque se hão-de lembrar de que confiamos nelas. Não pensarão: “toda a gente faz isto”. Sentir-se-ão mal. Terão pena. Voltarão à verdade.
Mesmo que tenhamos sérias dúvidas, será melhor deixarmo-nos enganar do que lançar sobre elas a suspeição, que magoa e marca e arruína. Pode perder-se qualquer coisa, mas é muito mais – e está noutro plano – aquilo que se ganha.
Paulo Geraldo
O Leproso
Sou o leproso e estou aqui. Não posso fazer muito mais coisas…
Já sabem: a carne apodrece-me e cai deixando feridas. Cheiro mal. Se pudessem ver-me, ainda tinha um resto de nariz para vos mostrar. E os olhos, no fundo de uns buracos que têm aumentado imenso.
Mas não seria agradável olharem para mim. Nem eu próprio olho para mim: deixei de usar espelho há muito tempo. Não é necessário, aliás, porque os outros leprosos quase todas as manhãs me vão contando as novidades. Acontece, normalmente depois de acordarmos. É que para nós também existem a noite e o dia, e muitas vezes conseguimos mesmo dormir no chão duro destas cavernas.
Dão-me os bons-dias e dizem qualquer coisa como: “Olha, pá, já não tens a orelha direita”. E a verdade é que nessas ocasiões nos rimos muito. Acho, até, que estamos proibidos de viver nas cidades dos homens porque não querem ver-nos rir.
O único riso verdadeiramente puro é o daquele que se ri de uma orelha que caiu. Mas poucos sabem disso.
Se caminhássemos pelas avenidas haviam de lembrar-se de que todas as orelhas inevitavelmente cairão. E não é agradável que recordem constantemente a alguém a ameaça cada vez mais próxima de um problema para o qual não possui solução.
Nós também não temos solução. Rimo-nos.
A solução está em não haver solução. E esta forma divertida de aceitarmos que a vida seja como é, este modo sossegado de cooperarmos com o inevitável, significa para nós uma serenidade que é um tesouro sem preço.
Para os outros, somos somente a lembrança desagradável de que não passam, também eles, de leprosos adiados e de futuros cadáveres; de que, sem dúvida, não terão neste lugar o seu paraíso, por mais que façam crescer o saldo da sua conta bancária.
Somos um grito em forma humana, um aviso irrecusável, uma censura que inevitavelmente se aloja no fundo das consciências.
E, por isso, fomos empurrados para estas cavernas. O que, de resto, não nos incomoda demasiado, pois todo o planeta é, de certo modo, uma caverna. Lembramos perfeitamente a frase da mulher santa de Ávila, quando disse que esta vida não pode ser mais do que uma má noite numa má pousada.
Não querem cruzar-se conosco. Desejam abraçar sem perturbações a voragem alucinante do seu caminho de prazer e vaidade. E viemos para estas cavernas. Os idosos foram expulsos das suas famílias e encerrados em “lares”. Planearam a eutanásia para se verem livres dos doentes. E abortaram aqueles que poderiam vir a nascer com deficiências. E muitos foram abandonados às suas dores na solidão de negros hospitais. E fizeram muitas outras coisas.
Mas, do fundo destes buracos, temos um segredo para lhes dizer. Quando, num momento de lucidez, descobrirem que tudo é vazio, venham ter conosco. Quando não souberem como fazer dos filhos homens direitos, passeiem com eles por um cemitério, sentem-se com eles à beira de um doente que sorri no leito onde vai morrer, levem-nos aos lugares onde há crianças esfomeadas a brincar, descalças e alegres.
Sim, podemos contar-lhes o segredo da alegria, o segredo da bondade das coisas más, o segredo da plenitude que habita as coisas simples.
Paulo Geraldo
Anão ou gigante ?
Era apenas um sujeito com roupas rasgadas, parado próximo a uma lata de lixo. A autopiedade o corroia por dentro, quando sua atenção foi atraída pela passagem de um homem que lia o jornal a altas gargalhadas. Curioso, tentou aproximar-se. O desconhecido notou a sua presença e riu com mais intensidade ainda; já não ria do texto do jornal, mas do individuo mal vestido que desprezava. A autopiedade cresceu e ele diminuiu.
Apareceu uma mulher mascando chiclete; ele foi até ela na esperança de conseguir um pouco para si. Ela virou-se bruscamente e viu diante de si um gigante que podia devorá-la, roubá-la, estrupá-la ou matá-la. Ela correu com terror e ele correu atrás em estado de súplica. Quando ela percebeu que tudo o que ele queria é um pedaço de chiclete, seus olhos o reduziram ao tamanho de um verme, deixando-o menor ainda; foi a gota d´água para uma decisão de suicídio aflorar.
Ele se preparou para se jogar na frente de um caminhão, mas conteve--se ao ver uma criança prestes a ser atropelada por uma vã. Em um movimento rápido, salvou o garoto. Pessoas se aglomeraram em sua volta e aplaudiram seu ato. E ele cresceu, cresceu e cresceu...
Paulo Câncio

Assim era a praça
A essa altura, ele deve estar no céu. Faz tempo que não tenho noticias. Já era bem velhinho quando o conheci. Era raro passar pela praça e não vê-lo por lá. Cabelos brancos, pele enrugada, dentes faltando. Vestia-se de modo simples. Sentar-se no mesmo banco que ele significava ser convidado a conversar. Muitos se afastavam sem ouvir suas primeiras palavras; não estavam dispostos a escutar uma conversa chata de um velho que já deveria estar para lá de esclerosado. No entanto, quem se permitia dialogar uma vez ficava surpreso com a lucidez com que aquele homem falava. Como enxergava com clareza o que para outros parecia tão complicado!
Como muitos outros, eu ia diretamente à praça na intenção de levar um papo agradável e de ouvir palavras tão sábias. Várias vezes reparei em pessoas que chegavam tristes ou mal humoradas e saiam sorrindo, eu não era o único. Hoje a praça já não é tão frequentada.
Não havia ninguém que já houvesse conversado apenas uma vez e não reservasse pelo menos um horário por semana, ainda que curto, para relaxar ou resolver problemas naquele banco da praça. Foram conselhos e opiniões que salvaram casamentos e impediram que empresas quebrassem. Muitos abandonaram a leitura de livros de auto-ajuda depois que começaram a frequentar aquele banco da praça.
Passei muito tempo fora. Depois que retornei, não o encontrei mais, porém sempre me lembro dele quando passo pela praça onde não importa quantas reformas a prefeitura faça, nada substituirá o toque especial que o velhinho dava. Provavelmente, foi um anjo que cumpriu sua missão e voltou para o céu. Dadas as suas características não imagino que possa estar em um outro lugar.
Paulo Câncio
 

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